Dante Alighieri: Poeta também da liturgia
Atualizado: 26 de jan.

“A Igreja tem o direito especial de chamar Alighieri de seu.” Assim se expressava em 1921, ano do sexto centenário da morte de Dante Alighieri, o Papa Bento XV, na encíclica In Praeclara Summorum. Passados cem anos, também o Papa Francisco, seguindo seu predecessor de venerável memória, brindou o a Igreja e o mundo com a carta apostólica Candor Lucis Aeternae, em homenagem aos 700 anos da morte do sommo poeta – sumo poeta, que inaugurou a língua italiana, imortalizando-a em seus versos.
Vivendo nos séculos XIII e XIV, Dante será visto quase que como “o emblema da Idade Média”, legando para os séculos seguintes a sua Comédia, que receberá de outro poeta do séc. XIV, Giovanni Boccaccio, o justíssimo epíteto de Divina, na qual expressará em versos toda a beleza produzida pela teologia, imaginário e cultura medieval. Dante nasce no século XIII, compondo, assim, a bela constelação produzida por esse século de luz na Igreja, que possui, além do poeta florentino, estrelas de intenso brilho, como Santo Tomás de Aquino, São Boaventura e São Luís Rei de França. Comparando-o a outros grandes poetas que a Igreja suscitará aos longo dos séculos, como Santo Efrém, Santo Ambrósio e São Venâncio Fortunato, o Papa São Paulo VI, na carta apostólica Altissimi Cantus, em comemoração dos 700 anos do nascimento de Dante em 1965, exclama jubiloso que “a cítara dourada, a lira harmoniosa de Dante ressoa com toques admiráveis, soberana pela grandeza dos temas tratados, pela pureza de inspiração, pelo vigor combinado com requintada elegância”.
Aproveitando o mês de maio, especialmente devotado pela piedade popular à Santíssima Virgem, é oportuno recordar os louvores com que Dante coroa a Santa Mãe de Deus. Toda a Divina Comédia é permeada de uma terna devoção mariana, mas de modo especial o canto XXXIII do Paraíso, quando o poeta, conduzido por sua amada Beatriz e por São Bernardo de Claraval, enfim vê aquela que foi digna de ser a Imaculada Mãe de Deus. Nesse canto Dante põem na boca do Abade de Claraval, o Doutor Melífluo, uma sublime e singela oração, cuja beleza dos versos expressam a mais alta teologia do Verbo que, esvaziando-se de sua glória, fez-se carne no ventre da Virgem, que no céu é “meridiana luz da caridade” e na terra, para a “fraca humanidade”, é “viva fonte de esperança”.
Tão belos são esses versos que o Papa Bento XV, na sua já citada encíclica no sexto centenário da morte de Dante, afirma que ali resplandece “a Redenção da humanidade realizada pelo Verbo de Deus feito homem, a suprema bondade e liberalidade de Maria, a Virgem Mãe, Rainha do Céu”. E a Igreja, reconhecendo o grande valor espiritual que há nos versos do poeta florentino, consagrou seu verso a Virgem Maria inserindo-o em sua oração oficial, a Liturgia das Horas. De fato, na reforma litúrgica após o Concílio Vaticano II, na restauração do Breviário, o monge beneditino Anselmo Lentini, que chefiava a subcomissão responsável pela revisão dos hinos do Ofício Divino, traduziu para o latim os versos do canto XXXIII do Paraíso da Divina Comédia e os inseriu na Liturgia das Horas para o ofício da Memória de Santa Maria no sábado. A primeira parte forma o hino do Ofício das Leituras, e a segunda o hino das Laudes. Assim ficou na tradução para o português na edição brasileira da Liturgia das Horas:
Ofício das Leituras
Do vosso Filho, ó filha,
ó Mãe e Virgem pura,
sublime e mais humilde
que toda criatura!
Em seu conselho eterno,
Deus viu vossa beleza,
ó glória e esplendor
da nossa natureza,
a qual se fez tão nobre
que o seu supremo Autor,
de modo admirável,
um corpo em vós tomou.
No seio duma Virgem
revive, em fogo, o Amor.
Na terra a flor celeste
germina ao seu calor.
Ao Pai louvor, e ao Filho
da vossa virgindade,
que vos vestiu, no Espírito,
de graça e santidade.

Laudes
Da caridade Estrela fúlgida
para os celestes habitantes,
para os mortais és da esperança
a fonte de águas borbulhantes.
Nobre Senhora, és poderosa
do Filho sobre o coração;
por ti, quem ora, confiante,
dele consegue a salvação.
Tua bondade não apenas
atende à voz dos suplicantes,
mas se antecipa, carinhosa,
aos seus desejos hesitantes.
Misericórdia é o teu nome,
suma grandeza em ti fulgura.
Com água viva de bondade,
sacias toda a criatura.
Glória a Deus Pai e ao Santo Espírito,
glória ao teu Filho Redentor,
que te envolveram com o manto
da sua graça e seu amor.
Inserindo na sua oração oficial dois hinos retirados da obra de Dante, a Igreja demonstra o estreito laço entre a fé e a arte que se deixa imbuir dos princípios dessa mesma fé, buscando a contemplação da beleza suprema que é o próprio Deus. A obra de Dante, definida pelo Papa Francisco como “uma mina quase infinita de conhecimentos, experiências e considerações em todos os campos da pesquisa humana”, é ainda hoje um convite a que os artistas façam também de sua arte uma oração e possam, retornando às palavras do Santo Padre, “comunicar as verdades mais profundas”. Hoje, os versos de Dante em louvor à Mãe de Deus são instrumento de oração de onde se pode haurir uma profunda e fecunda meditação sobre o mistério da encarnação, as virtudes da Santíssima Virgem e o amor de Pai em nos trazer a salvação, Cristo, seu Filho e Senhor nosso, por essa bendita e imaculada “porta do céu”. É uma ótima oportunidade de devoção para o mês mariano meditar nas palavras desses dois hinos, que há quase 700 um poeta, inspirado pela fé, compôs em louvor à Mãe de Deus e que hoje é para nós sinal de que do coração do homem, criado à imagem e semelhança de seu criador, pode sair belas orações na forma de singela poesia.
Originalmente publicado no jornal O Testemunho de Fé,
edição semanal n. 1054, 9 a 15 de maio de 2021